Segundo o Ministério Público do Trabalho (MPT), nenhum empreendimento baiano possui autorização legal para produzir fogos de artifício.
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foto: reprodução |
Mesmo quase três décadas depois da explosão que tirou a vida de 64 pessoas em uma fábrica de fogos clandestina em Santo Antônio de Jesus, a prática ilegal da pirotecnia continua ativa no município e em cidades vizinhas como Muniz Ferreira. Os métodos mudaram, mas a atividade persiste, muitas vezes como única alternativa de renda para famílias de baixa renda do Recôncavo Baiano.
Segundo o Ministério Público do Trabalho (MPT), nenhum empreendimento baiano possui autorização legal para produzir fogos de artifício. Ainda assim, a fabricação segue ocorrendo de forma escondida, longe dos olhos da fiscalização, principalmente em fundos de residências. Além de Santo Antônio, Muniz Ferreira, outras cidades como Cruz das Almas e Serrinha também foram citadas pelo órgão como focos da prática ilegal.
“Não existe mais uma grande estrutura que concentre a produção e o estoque. A fabricação agora é dispersa, feita em áreas residenciais para evitar ser descoberta”, explicou o procurador do MPT, Ilan Fonseca.
A dor que não desaparece em Santo Antônio
O caso mais emblemático da tragédia envolvendo fogos na Bahia aconteceu em 11 de dezembro de 1998, em Santo Antônio de Jesus. Na ocasião, uma explosão em uma fábrica clandestina matou 64 pessoas, em sua maioria mulheres. Um dos sobreviventes, Alex Santos, que perdeu a mãe no acidente, produziu um documentário intitulado Órfãos do 11 de Dezembro, lançado em 2024.
“Fiquei indignado que não tem um memorial no local. Hoje é uma área invadida. Se fosse em outro lugar, já teria um filme, um livro, uma lembrança digna. Mas estamos falando do interior da Bahia, de uma história de uma comunidade periférica, de mulheres negras”, relatou Alex.
Além da perda de vidas, o episódio deixou dezenas de crianças órfãs e famílias destruídas. A fábrica era comandada por Osvaldo Prazeres Bastos, conhecido como Vardo dos Fogos. Após sua morte, os filhos seguiram envolvidos com a atividade e chegaram a ser detidos em fiscalizações recentes, mas acabaram liberados após prestarem depoimento.
Muniz Ferreira no radar das autoridades
Assim como Santo Antônio, a vizinha Muniz Ferreira também aparece entre os municípios com maior concentração de produção ilegal de fogos. Pequenos produtores operam longe da legalidade, expondo suas famílias — e a vizinhança — ao risco de novas explosões. O problema é agravado pela falta de alternativas econômicas e pela herança cultural que mantém a atividade viva.
“É uma questão cultural e histórica. A produção de fogos foi passada de geração em geração, especialmente em famílias que não têm outra fonte de renda”, afirmou Ilan Fonseca.
De acordo com a jornalista Amélia Vieira, que acompanhou o caso de 1998, muitos moradores voltaram a trabalhar com fogos mesmo após a tragédia. “As pessoas retornaram à atividade por necessidade. São regiões com poucas oportunidades e alto índice de vulnerabilidade social.”
Fiscalização e desafios
A fiscalização encontra dificuldades para conter a produção clandestina. Mesmo após o cancelamento definitivo do registro da fábrica envolvida na explosão de 1998 e a proibição judicial para que familiares de Vardo dos Fogos sigam no setor, as apreensões continuam.
A legislação classifica o crime como de menor potencial ofensivo, o que faz com que muitos infratores sejam apenas detidos e liberados. Ainda assim, o Ministério Público reforça que os consumidores devem fazer sua parte:
“É fundamental não adquirir produtos sem procedência. Exigir nota fiscal e verificar a identificação do fabricante são passos importantes para evitar tragédias”, alertou Fonseca.
Caminhos para a legalização
Em 2024, foi criada a Associação Baiana de Pirotecnia, com o objetivo de orientar produtores informais rumo à legalização. O presidente, Ricardo Cielo, afirmou que a entidade trabalha para “consciência e profissionalização”, sempre respeitando as exigências legais de segurança.
Justiça lenta e reparações
Embora cinco pessoas tenham sido condenadas em 2010, nenhuma delas chegou a cumprir pena em regime fechado. Em 2020, o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por falhas na responsabilização do caso. Os familiares das vítimas foram indenizados, mas os valores não foram divulgados.
A permanência da produção clandestina em Santo Antônio de Jesus e Muniz Ferreira mostra que, mesmo após quase 30 anos, a tragédia ainda ecoa em cada nova apreensão. Enquanto não houver políticas públicas eficazes de inclusão social e emprego, o risco permanece vivo — dentro das casas, nos quintais e na história daquelas famílias que ainda vivem o luto, agora silencioso.
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